segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

No dia em que perdi a noção do tempo





Parei o carro. Ali está ainda afinal a nossa casa. O portão trancado. As portadas das janelas cerradas. A chaminé que não fuma. O céu hoje cinzento e as nuvens carregadas. O jardim abandonado, que agora espreito sobre o muro. O banco de pedra coberto de musgo, a glicínia apesar de tudo resplandecente, as hortênsias murchando nos canteiros que tal como eu estão tristes. Aqui estou deste lado do portão, ausente da vida que não consegui ter.
Fecho os olhos, aspiro a humidade do ar, esfrego as mãos. Quem me dera ter a chave e entrar pela casa adentro, revisitando o nosso espaço, reencontrando momentos perdidos, vasculhando todos os recantos da memória. As noites passadas à lareira. Eu lendo sobre o tapete, tu sentado na poltrona sorrindo e bebendo o teu whisky, vindo ao meu encontro, afagando o meu cabelo solto e despenteado, eu parando de ler para te beijar. A cozinha, antiga e espaçosa onde tomávamos chá antes de subirmos para o quarto. A sala, a longa mesa de madeira tosca, a janela virada à serra, a cortina branca voando por entre a janela semi-aberta, o cão saltando entre as tuas pernas, o cheiro a bolo de mel insinuando-se da cozinha. E tu, parado na escada, acariciando as minhas costas, beijando o meu ombro naquela tarde de verão.
Mas agora é Inverno e estou cá fora. Tudo ruiu. A casa moribunda, o jardim envelhecendo, o meu cansaço pesando no fundo da minha alma. A tua imagem ausente pairando afinal ainda por aqui. Viro as costas Entro no carro. Que esperavas? Que a glicínia tivesse murchado? Que as pedras da casa tivessem caído só porque não vives mais aqui?
Ergue-se a casa. Cheiram as flores. Há humidade dentro de mim. Apetece-me ficar e partir. Partir e ficar alternadamente. Seguir pela vereda acima em busca de ti. Talvez sejas tu que por ali segue. Há uma mancha verde, alguém que mal distingo daqui, agora que são quase seis horas e a tarde de Inverno se aproxima do fim. Diminui a luz. Reduz-se a minha vontade de ir atrás de ti. Paro. Sigo-te apenas com o olhar. Aquela sombra não podes ser tu. Sei que estás na cidade. Sei que não poderias ser tu subindo à montanha ao entardecer com esta invernia fria.
Tremo. Volto para trás. Não eras tu. E no entanto é a tua figura que continua a recortar-se no interior dos meus olhos cerrados, agora que estou sentada no carro, procurando coragem para fugir daqui. Ali vais devagar, o cão à frente, subindo apoiado na bengala, coxeando imperceptivelmente. É o teu andar, que tão bem conheço, o assobio agudo para chamar o cão, vais...e eu fico.
Aqui estou bem. Protegida do vento, de todas as minhas ilusões, da vida , do amor. Demoro uma vida a pôr o carro em andamento. Afinal a casa existia mesmo. Não a imaginei. A nossa casa, a nossa morada moribunda, a nossa semente murchando devagar entre as pedras e o musgo. Tudo fechado. As portas, as janelas, tu, tu, tu...e eu também, fechada no esquecimento e em mim.

Esta é uma história imaginada. Nada existiu e no entanto sinto que a vivi.
Poderia ter sido um sonho, uma projecção futura, as casas e os amores forjam-se também na imaginação...presente, futuro, passado...que importa agora? O tempo é afinal a maior ilusão.